sábado, 5 de maio de 2012

As três formas extremas de pedir perdão

KYRIE ELEISON...


Atualmente o perdão está se tornando 'mercadoria' inflacionada no mercado de nossas almas. A cada dia que se passa está mais difícil de se dar o perdão e por conseqüência de recebê-lo. É sabido por todos os cristãos que na estrada do perdão existe apenas um fluxo, a medida do perdão que recebo tem como medida o perdão que sei dar e oferecer. Gosto de pensar no perdão da seguinte forma:  o perdão não é esquecimento, pois, nunca seremos capazes de esquecer o sofrimento que os outros nos fizeram passar e suportar, mas, o perdão é uma ferida cicatrizada, e que depois de ser curada pelo toque de Deus me  faz capaz de olhar para ela, lembrar-me de tudo quanto me fez sofrer e chorar, mas ela, como antiga ferida e cicatriz, não exerce mais sobre mim o poder da dor, ou seja, ela não me faz sofrer mais. Assim é o perdão, o bálsamo do Espírito Santo de Deus derramado abundantemente em nossas feridas. Lindas as palavras, não? Sim, mas na prática, dificílimas de serem vividas.
Escrevendo isso agora, me vem em mente tantas e tantas situações onde me senti ofendido, magoado, machucado, nossa, só de lembrar parece doer, mas não dói. Recordo-me de uma situação em que precisei muito do perdão de alguém, mas não o recebi, na verdade, nem escutado eu fui. A pessoa se sentia muito grande, poderosa, cheia de si mesma e de suas convicções improváveis. Por isso não recebi desta pessoa o perdão. E mais, pedi perdão por algo que eu não tinha cometido, isso é o mais angustiante. Sabe quando você se vê numa situação limite onde é melhor você se render para não perder? Pois bem, era algo parecido com isso, mas, mesmo tendo-me rendido, perdi, e como essa perda se repercute até hoje na minha vida. Mas, tudo é passado. Como afirmava Santo Agostinho acerca do tempo:" (...) o passado já foi, o futuro será, e o presente, a cada instante está deixando de ser." Então, pé na estrada, a vida continua.
Pois bem, ao começar a escrever esta reflexão de hoje, eu pensava nas formas extremas que temos de pedir perdão a Deus e que, por conseqüência, podem nos ensinar a nos aproximar dos outros e também fazê-lo. Extremas não porque sejam as únicas formas mas, no meu ponto de vista, são as que mais tocam o coração de Deus. Por mais que basta uma lágrima contrita para que Deus se derreta de misericórdia por nós.
Deste modo, gosto de contemplar e de aprender com três personagens bíblicos. Primeiro, a pecadora arrependida de Lucas 7, 37. Segundo, o cobrador de impostos Zaqueu em Lucas 19, 1 ss e por fim, o cego Bartimeu de Marcos 10, 46-52. Cada um com sua história, suas angústias e medos, seus ambientes próprios e seus pecados pessoais. 
A pecadora externa o seu pedido desesperado de perdão, entrando sem ser convidada num dos jantares de Jesus e lhe quebra nos pés um vaso de perfume e começa a lavar com suas lágrimas de dor e arrependimento o pés do Senhor. É uma imagem lindíssima de ser construida em nossas mentes e em nossos corações. Ver o desespero singular desta mulher que não fala, que não grita, mas que faz de suas lágrimas, de seus beijos, de seus negros e longos cabelos, toalhas que Lhe enxugam os pés e de sua oferta perfumada, um grande grito silencioso de perdão. O pedido de perdão sufocado no peito desta mulher, grita ensurdecedoramente no coração misericordioso de Jesus. E qual é o gesto de Jesus? Ele acolhe, exorta e perdoa. Magnífico! Jesus não pergunta quais são os pecados que ela cometeu, até porque Ele sonda os corações; Ele não perscruta a intimidade daquela mulher, até porque ela se abrir inteiramente diante dele; Ele não se deixa constrangir pelo que os outros vão pensar Dele com aquela mulher, mas neste momento, ali, envolvido e absorto inteiramente na cena, onde parece não existir mais ninguém, Jesus se entrega inteiro a ela, respondendo, num diálogo sem conversas, ao gesto de entrega inteira dela em Suas mãos de infinita misericórdia. Naquele instante, tudo se fez graça.
A outra imagem que explode em nossos corações é a de Zaqueu. Meu Deus, que homem! Grande no seu posto como chefe dos cobradores de impostos; grande em sua situação financeira, pois era rico; grande em seu status frente ao povo e a cidade mas, pequeno na estatura física e mais mísero ainda no seu coração despedaçado pelos pecados. Diferentemente da mulher pecadora, que se dispõem de perfumes e outros gestos que lhe são espontâneos, Zaqueu só tem um sincômoro, uma arvore onde ele podia ficar de longe só para ver Jesus. É até cômico pensar na figura de um homem que conta com certos prestígios sociais correndo e subindo em árvores. Na verdade, em meio àquela multidão, esta era a única forma que Zaqueu dispunha para 'matar' a sua suposta curiosidade. Fico me perguntando: teria Zaqueu subido naquela árvore só para ver Jesus ou já trazia no seu coração o desejo de conhecer Jesus? Penso que ambos os sentimento lhe tomavam conta do coração. Zaqueu queria tanto ver Jesus como também ser visto por Ele.  E Jesus o vê. Não só o vê mas lhe promete sentar-se à mesa com ele. Até porque, o olhar de Jesus não é um olhar qualquer. É um olhar que penetra alma, vísceras, que chega ao mais íntimo de nós. Por isso, a surpreendente conversão de Zaqueu. Isso se dá, justamente para nos mostrar que Deus sente um profundo desejo de encontrar-nos. E a graça acontece quanto eu também me deixo encontrar por Jesus. O que nos surpreende é que tantas vezes agimos como Zaqueu. Quando pensamos que queremos ver Jesus, logo, é Jesus que, mais do que nós mesmos, anseia por este encontro de amor e de conversão. Mais uma vez pergunto: qual é o gesto de Jesus? Ele acolhe, exorta e perdoa. Magnífico! Aí o milagre acontece.
Por último, volto o olhar para Bartimeu. Gosto muito dele. Bartimeu é impulssivo, age desesperadamente. É completamente diferente da pecadora que, discretamente, vai entrando na sala de jantar. Diferente de Zaqueu, que é tímido e 'discreto'. Bartimeu não tem nada de discrição. É destemido, não aceita as repreensões daqueles que insistem em fazer calar a sua voz. Mesmo sendo cego, consegue perceber, através de sua audição aguçada, que quem passava era Jesus o Filho de Davi. Como é cego e mendigo, diferentemente de Zaqueu, Bartimeu é desprovido de tudo, de bens, de posses e até de dignidade mas, o único instrumento que lhe resta, ele bem o sabe usar. É a voz. Bartimeu é escadaloso. Grita de forma ensurdecedora e deste modo, chama a atenção de Jesus. É impressionante como uma pessoa escandalosa nos incomoda. E é isso que que acontece com a multidão, também desesperada por um olhar de Jesus, se sente incomodada por Bartimeu mas ele não se intimida. Tenho a sensação de que, quanto mais o mandavam calar, mais alto ele gritava, até parece criança mimada. Mas não era. Seu grito era fruto de um medo muito grande de que a graça passasse por ele sem que ele fosse agraciado. Isso não acontece. Jesus nunca se desviaria de um clamor suplicante. Pelo contrário, quanto mais desespero, mais insegurança, mais demonstração de necessidade mais Jesus se aproxima. E é isso que Ele faz com Bartimeu. Ele o chama, e como se já sentisse a alegria da cura, Bartimeu pula, dá um salto e não pensa em mais nada, abandona até a única coisa que tem, que é seu manto. É obvio que, para estar com Jesus, tudo o mais se torna desprezível e até desnecessário. E qual é o gesto de Jesus? Ele acolhe, exorta e perdoa. Magnífico!
É belo perceber como Jesus nunca se esquiva das necessidades e do ser humano. Na verdade, como um ímã, Jesus sempre os atrai. E mais do que atraí-los Ele os cura e restaura. O perdão é isso: é o recomeço que Deus permite em nossa vidas. É a chance de recomeçar, de ser diferente e de dar a si mesmo uma nova possibilidade. É preciso que assumamos isso. 
Meus irmãos, não importa qual seja a sua postura diante de Jesus. Jesus não quer saber se você se apresenta diante Dele como a pecadora, com perfumes, ou como Zaqueu, em sua árvore ou como Bartimeu, que grita, Jesus só que que você venha até Ele. Vá e não se arrependerás.
Deus abençoe.

Pe. Michel Rosa

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Senhor, restaura em mim o tempo da Tua graça.

A nossa Força Vem do Senhor Jesus!



Boa noite caros amigos e irmãos.
Hoje o dia está corrido, quase não tive tempo de sentar-me aqui para fazer a minha reflexão do dia. É impressionante como o tempo tem o poder de nos engolir. Percebo isso a cada dia que se passa. É possível mesmo que o tempo tenha diminuído ou somos nós mesmos que acrescentamos a ele sempre coisas e mais coisas? 
As pessoas têm corrido de um lado para o outro. De um canto a outro. E no final do dia percebem que mais correram do que viveram. Erroneamente, algumas pessoas amigas que vivem na cidade de São Paulo, cidade esta que recebeu popularmente o título de 'Cidade que não dorme', sempre se entusiasmam com a vida no interior dizendo que aqui todas as pessoas são tranqüilas, pacatas, vagarosas, que ninguém corre etc... Mas se enganam, a obsessão pela correria e por dizer aos outros, 'tenho uma agenda a ser cumprida hoje', também já chegou por aqui, no interior. Aqui, todos correm! A cidade se desperta às 4:00 da manhã quando o povo, ainda tentando se restabelecer da dura lida do dia passado, já se apronta para o novo dia que desponta. Os que trabalham nas fazendas, preparam suas marmitas; os que são padeiros, aquecem os fornos para o assado; os que transportam as pessoas aos seus destinos, fazem pela madrugada, ranger os sons dos motores de seus veículos e assim a vida acontece. 
Aqui, em nossa pequenina Restinga, quando vivemos o tempo quaresmal, para unir as nossas vidas ao Santo Sacrifício do Cristo, fazemos a chamada procissão de penitência. O sacerdote se levanta às 3:45 da madrugada, abre a Igreja às 4:00 e espera o povo que só chega quando, na torre da Igreja Matriz, soa o primeiro badalo dos sinos paroquiais. É belo ouvir ressoar entre a neblina o tinir dos sinos. Na verdade, mais do que fazer ecoar seus sons, os sinos despertam a cidade. No silêncio emudecedor, de animais que se aglomeram nos currais e estábulos, de corpos cansados que ainda descansam, de corações mergulhados em sonhos e pesadelos, de almas repousantes e esperançosas de um novo dia que começa, eis que soa, chamando-nos para a vida, os sinos da Igreja. Pena que nossas Igrejas tenham perdido este hábito do sino! Mas aqui, graças a Deus, ainda os temos. Dois, dois belos sinos fundidos no reinado de Sua Santidade o Papa Paulo VI. E assim, vagarosamente, o poder do sino se manifesta. O povo se reúne, o silêncio se rompe, a cidade acorda paulatinamente e o povo, na Igreja, entoa magnificamente o "Maria de Nazaré...". Meu Deus, que beleza! Através de um canto tão simples, popular e conhecido, que brota da alma e dos corações desejosos dos fiéis de se unirem à Virgem Santíssima, exprime-se um profundo desejo de Deus. O canto não perde em nada, para a Nona Sinfonia de Beethoven. Não estou exagerando, venham um dia a Restinga para verem com que retumbância ele é entoado. Enfim, se de um lado os sinos despertam os corpos para o tempo da fé, o canto desperta as almas para mais uma experiência de fé em Deus.
Voltemos, pois, falávamos do tempo. Na ciência teológica aprendemos sobre dois tempos distintos. A um chamamos 'cronos', que é o tempo cronológico, aquele que o tic-tac dos nossos relógios não cessa de repetir. E quando nós permitimos que este tempo nos engula, nada mais restará em nós para Deus. Até porque, neste tempo, até o momento dedicado a Deus seria desperdiçado.  Por isso a correria, por isso as máquinas que não descansam na produção, as mãos que não cessam o trabalho, os olhos estatelados que não repousam, enfim, a agitação comum aos nossos tempos. Hoje, infelizmente, a maioria de nós nos perdemos no labirinto deste tempo. Labirinto sim, porque nele nos perdemos, nos consumimos e deixamos de viver e quase nunca encontramos a saída. Labirinto, porque procuramos incansavelmente pelo tempo e pela sua prolongação mas ele nos foge como a água que tentamos aprisionar sem sucesso entre os dedos de nossas mãos.
Em contrapartida, existe também um outro tempo, ou, uma outra forma de encaramos o tempo, e ele se chama 'kairós', isto é, o tempo da graça de Deus, o tempo de Deus, o momento oportuno de Deus. Nesta outra expressão do tempo, não existe tic-tac reverberantes, não há um tempo que se perca até porque, nele, todos os instantes são aproveitados como pequenas gotas d'água. Sim, pequenas gotas d'água! Quem já passou por um instante sequer com sede e sedento sabe dar valor a uma única gotinha de água. E assim é o kairós de Deus. Cada segundo, minuto, horas, dias, meses, anos, frações diversas de tempo, é tempo de estar com Deus e de estar em Deus. 
Quando contemplamos Moisés no monte e na presença de Deus, vemos nele um homem que se distanciava de todas as dificuldade do êxodo, para que naqueles instantes, pudesse ser todo de Deus e Deus pudesse ser todo dele. Quando ainda olhamos para Abraão, na subida íngreme até o monte Moriá, carregando seu filho Isaac para que pudesse ser sacrificado, ali também, aquele instante, era o tempo adequado para que ele pudesse entrar no coração de Deus e entender seus preceitos e seus desígnios a cerca de sua descendência numerosa. Com Jesus não é diferente, pois Ele sempre 'gastava' seu tempo ora com as pessoas, - curas, anúncios, libertações -, e ora com Deus. Na verdade, estava mais intimamente ligado a Deus pois sabia que nada poderia dar de Si aos outros se não estivesse cheio de Deus, cheio da graça de Deus.
Jesus deixa-nos a lição, estar em Deus não é tempo perdido. É nele que acertamos o tempo de nossas vidas. Se nossos relógios estão adiantados, eis que Deus os reorganiza. Se nossos relógios estão atrasados, Deus os atualiza e assim, nos refazemos em nossos sentimentos de fé, amor  e esperança. 
Aproveitemos o tempo de hoje em nossas vidas, saibamos dar valor às pequenas coisas e à presença das pessoas. Se existe algo que nos faz valer a pena em estar numa cidade menor este algo é justamente o fato de podermos nela, ainda olhar para o universo e contemplar tudo aquilo que é obra das mãos de Deus, e dizer, "tudo isso é muito bom". Por aqui, ainda é possível ver as estrelas na noite, sentir o cheiro da chuva que cai dos céus irrigando a terra, apreciar o aroma da grama ao ser cortada, ouvir o galo cantar e os pássaros anunciando um novo dia e um novo recomeço, e mais, é possível ver o pôr-do-sol. Como é poderosa esta contemplação. Nela vejo o Cristo resplandecente que faz iluminar sobre nós todo Seu amor e Sua graça, vejo o Sol nascente e poente que nos veio visitar e ao contemplar, mais um dia que se finda, não trago a sensação de estafa ou de tédio, mas a sensação de uma profunda certeza que sai do meu coração e que me faz recordar os discípulos de Emaús e sua exclamação: "Fica conosco, Senhor, é tarde e a noite já vem! E, no sol que se esconde, contemplo o Cristo que é o Sol sem ocaso e que silenciosamente me responde: Fique em paz! Deste modo, posso repousar tranqüilamente em Deus com a sensação de que, naquele dia, dei tudo de mim, o melhor de mim e que por mais um dia fui um vencedor.
Deus abençoe.

Pe. Michel Rosa

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Diante da Vossa presença, Senhor, não é justo nenhum dos viventes!

Contemplemos a Vitória!


O que é o homem, Senhor, para dele assim Vos lembrardes e o tratardes com tanto carinho? É esta pergunta que eu sempre gosto de fazer diante de Jesus Eucaristia. O que é o homem? A antropologia, que é o estudo do homem, vai tentar nos dar inúmeras respostas, mas precisamos de uma resposta de Deus. Uma resposta que silencie tantas e tantas vezes nossos medos, angústias e tristezas.
O ser humano é um misto de sentimentos. Hoje estamos felizes, amanhã choramos; ora somos fortes e vibrantes, ora somos fracos e tímidos. Em um momento estamos cheios de fé e certezas, somos destemidos, mas em outros, deixamo-nos ser levados pelas incertezas, incredulidades e medos. Não pense que isso é fruto de uma bipolaridade, pelo contrário, esta instabilidade de sentimentos é fruto de perguntas gritantes que existem dentro de nós e que vagueiam no silêncio absoluto sem respostas. E para muitas perguntas não há respostas. 
Há momentos na existência humana em que até o Santo Padre o Papa se coloca diante de Jesus e se interroga a cerca do que ele é, do que deve fazer, de qual é o melhor caminho para dar prosseguimento à sua missão como pastor supremo. Ou seja, estamos todos na mesma jangada, na imensidão do mar que é Deus. Particularmente eu prefiro a metáfora da jangada do que a do braco. Ser barco me dá a conotação de ser forte, robusto, fabricado com peças torneadas e indestrutíveis, eu prefiro ser jangadinha. Ela me traz mas concretamente ao que eu sou. Às minhas origens. Uma jangada precisa ser feita de madeira, uma unida à outra, e assim somos nós, juntos podemos mais. Uma jangada precisa estar bem arrochada e entrelaçada ou pelas cordas ou pelas fibras de bananeira, e assim somos nós, junto ao Espírito de Deus, a Ele nos unimos e entramos em intimidade com a vontade do Pai. Numa jangada, não entra muitas pessoas, só aquelas que Deus necessariamente insiste em fazer que elas participem diretamente de nossas vidas, e assim somos, no final de nossas vidas, sempre construímos pouquíssimas mas, verdadeiras relações fundamentadas no amor, na fé, nos sentimentos de fraternidade. Prefiro ser jangada pelo fato dela ser desengonçada no mar. Tantas vezes assim o somos nas 'aventuras' que Deus nos propõem. Prefiro ser jangada porque ela se lança mais inteiramente e até parece se modelar a cada onda que se quebra sobre ela. E assim deveríamos ser nós, nas ondas infinitas do sonho de Deus por nós. Prefiro ser jangada pois ela não tem leme, mas quase sempre chega ao seu destino confiando no mar revolto que tantas vezes a conduz por caminhos desconhecidos. Ser jangada é saber que, diante da presença de Deus, todos os nossos sentimentos de grandeza se desfazem pois, quem é justo diante do Senhor? Ser jangada é a metáfora perfeita para aqueles que são pequenos, se reconhecem pequenos e que desejam, nada mais do que serem conduzidos por Deus. 
A crise de fé pela qual o mundo passa hoje, a crise de identidade eclesial, é justamente fruto do não reconhecer-se jangada em Deus. Costumo dizer que, quando somos interpelados a respeito do que somos na Igreja, dizemos tudo: sou daquele movimento, sou desta pastoral, sou daquela realidade, e com isso, esquecemos de uma resposta fundamental: Sou Igreja! Sou parte deste corpo, "vivendo unidos em recíproco amor, como membros ligado por tão suave vínculo, formamos o Corpo de tão sublime Cabeça" que é o Cristo Jesus. Isso é sublime!
Quando tantas filosofias proclamam a morte de Deus, outras anunciam a religião como ópio do povo ou o homem sendo deus de si mesmo, em contrapartida, nos deparamos com um Deus tão  pleno de amor e de misericórdia que nos cria à Sua imagem e semelhança, nos trata com tanto carinho, e ainda nos convida a sermos parte de Si no Corpo da Igreja. E diante deste convite e de nossa resposta de adesão, começa assim, o grande desafio do ser humano cristão que é ser de Deus num mundo que não conhece a Deus.
Infelizmente, somos fracos, geralmente damos mais ouvidos ao demônio, que é acusador e que lança todos os dias nossas fraquezas diante de nós do que ao convite solícito de Deus. Mas é por isso que São Paulo aos Romanos nos exorta dizendo: "Embora nosso corpo esteja ferido de morte por causa do pecado, se estamos em Cristo e se Ele está em nós, logo, nosso espírito está cheio de vida, graças à justiça" (8,10-11). E é justamente isso que acontece conosco. Todos os dias, devido às nossas fraquezas, sucumbimos ao pecado, restauramos a mancha do pecado original em nós, deixamo-nos guiar pelas noites escuras, o espinho da carne grita em nosso corpo mortal despertando em nós as paixões e os desejos, mas a GRAÇA de Deus é maior e é ela que vem em nosso socorro, vivificando-nos, reerguendo-nos e fazendo-nos levantar as cabeças e perceber que se aproxima o dia da vitória. Contemplemos a vitória do Senhor!
Deus abençoe!


Pe. Michel Rosa


1- Santo Agostinho, Dos tratados sobre o Evangelho de São João, texto do século V.
2- Romanos 8, 10-11.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Sursum Corda


Olá, boa noite a todos. 
Estou começando hoje este blog que tem como maior objetivo partilhar um pouco das minhas idéias e experiências. Falo de experiências mas não sou tão velho assim, tenho hoje 32 anos e sou sacerdote católico. Desde muito cedo senti no coração o desejo de estar no seminário. Motivos? Tantos, por exemplo, o fato de ir às missas dominicais e de ver os seminaristas entrando vestidos de branco me dava a impressão que aquilo ali era um pedacindo do céu. Tudo que me impressionava na Igreja era totalmente humano: as vestes, o turíbulo, o incenso a trepidar no carvão em brasas, a fumaça a subir, o perfume esparramado no ar, as velas sobre o altar, os paramentos do bispo e suas belas mitras mirando para o céu, as cores litúrgicas que a cada dia me indicavam o motivo celebrativo mas já se antecipavam ao dizer-me que uma grande festa se aproximava e que no outro dia sempre seria melhor.
Hoje eu consigo entender que o meu chamado não foi transcendental, como o é na maioria dos casos, mas foi humano. Em tudo isso eu sentia um Deus humano chamando um mísero ser humano para uma aventura de amor. Digo aventura justamente por não saber o que viveria no seminário. Só sabia uma coisa, por meio de tudo aquilo que era humano Deus me chamava a uma realidade que superava a minha inteligência, a minha vontade e a minha própria humanidade. Deus me chamava a experimentar um pouco do céu estando aqui, ainda na terra.
Desculpe-me se pareço poético demais, mas a primeira experiência de Deus é sempre arrebatadora, sobretudo para um adolescente que vivia no interior e que tinha como principal atração a Igreja. Mas era assim que eu me sentia. Impelido a dar uma resposta a este suposto chamado Divino que se exprimia através de realidades humanas.
Eu tinha na frente da minha casa um amigo que havia ido para o seminário e as histórias que a mãe dele nos contava, de aventuras nos longos corredores, de orações, de partilha nos momentos das refeições, tudo isso me fascinava. Me fascinava ainda quando eu entrava no quarto deste jovem na casa dos pais dele e tudo ali, parecia ser de Deus. A estantezinha de madeira com livros católicos, algumas imagens de santos, terços, ou seja, tudo ali falava-me silenciosamente de Deus. De um Deus que eu já conhecia ao participar das santas missas dominicais, mas de um Deus que eu desejava profundamente experimentar. Na verdade eu trazia no meu coração um profundo desejo de ser de Deus, de mergulhar em Deus. 
Minha infância e adolescência nem sempre foram só sonhos. Existiu realidades tristes, dificuldades, crises pessoais de um pré-adolescente, e até mesmo situações de pecado, mas como eu não tinha a consciência desta realidade de distanciamento que o pecado causa entre nós e Deus, logo, eu dava seguimento à minha vida e projetos, sonhado em ser santo. Eu só não sabia que com o passar dos tempos era Ela, a santidade, que sonharia comigo.
Hoje, como ser humano e como sacerdote, tenho plena consciência de que o pior mau que o pecado gera em nós é o distanciamento de Deus. Não que Deus nos evite após o pecado, mas nós O evitamos. A imagem em Gênesis 3,8 é clara. O esconder de Adão e Eva - que estavam nus - ao ouvir o farfalhar das folhas com os passos de Deus no jardim é a imagem perfeita do que acontece com o ser humano em situação de pecado. Isto é, esconde-se de Deus. E o esconder é justamente uma situação de fuga e de vergonha que exprime a nudez daqueles que tinham a graça diante dos olhos do Criador mas agora se sentem imundos e na desgraça. É justamente por isso que a nudez é expressão desta graça perdida. Mas como tudo que é perdido, pode um dia ser reencontrado, logo, com a graça de Deus não é diferente. Quando nos abrimos a ela gratuitamente e nos propomos através da oração diária, da Eucaristia e da escuta da Palavra de Deus a reconstruir o elo rompido, Deus, na sua infinita misericórdia, vem ao nosso encontro e nos restaura. Eis aqui o grande Dom de Deus, desejar sempre recriar. Não é por menos que no Gênesis vemos logo no capítulo 1, um Deus Criador. Portanto, se Ele cria é porque constrói, se constrói, logo, reconstrói e sendo assim, sempre está disposto a nos refazer em Suas entranhas de amor.
A título de esclarecimento. Porque escolhi como tema do meu blog a expressão latina da Santa Missa de São Pio V "Sursum Corda"? Eu o escolhi, primeiro, por que acho belíssima a melodia do canto; segundo, por que penso ser muito significativo o gesto simbólico que o sacerdote faz em ir, paulatinamente, erguendo as mãos do altar enquanto entoa o "sursum corda" e terceiro, porque trago sempre na minha  vida a certeza de que necessitamos a cada dia, ter os nossos corações no Alto. É difícil mantê-lo lá, até porque, humanamente falando, o lugar do coração é no peito, é na terra, é nas coisas do mundo, porque é com ele que mais enxergamos, mas religiosamente, é no céu que se encontra o seu limite. É em Deus que ele deve estar se não quisermos continuamente sucumbir ao peso de nossa cruz e de nossa miséria humana. Não é por menos que em cada liturgia o sacerdote convida: Sursum corda (...) Corações ao alto. Justamente para nos lembrar que nossas paixões não devem estar no mundo, mas no céu. Onde está Deus aí deve estar o nosso coração e se de fato nascemos para as coisas do alto, como afirmava São Paulo, logo, é no alto que deve estar o nosso coração. Pois quanto mais estivermos aqui em baixo, mais nos deixaremos seduzir pelas coisas do mundo. Por isso se faz necessário empreender, como na foto a cima, a cada dia, a nossa procissão para o alto e para isso precisamos sim, muitíssimo, do sacerdote que quotidianamente nos adverte: Corações ao alto! Avante! Para o céu!
Deus os abençoe.

Pe. Michel Rosa.